É de conhecimento geral que as diversas tecnologias de Inteligência Artificial (IA) vem emergindo como uma ferramenta poderosa e efetiva no cenário energético internacional. O relatório Artificial Intelligence and Big Data da IRENA (International Renewable Energy Agency) (Figura 01), indica que as aplicações de IA podem ser utilizadas desde as etapas de geração de energia oriundas de fontes renováveis até para fins de previsão de demanda energética por parte de consumidores. Vejamos a 01, que retrata os principais campos do setor de energia, bem como as aplicações de IA existentes.
Figura 01: Aplicações emergentes de I.A. nos campos de energia.
Fonte: Adaptado de IRENA (2019).
Dentro deste contexto, no âmbito das aplicações relacionadas à geração, as Redes Neurais Artificiais (RNAs) possuem extrema relevância para tratar diversas aplicações dentro da cadeia produtiva das eólicas offshore. Especificamente neste artigo, iremos abordar as topologias clássicas das redes neurais, bem como o contexto de onde e como estas podem ser aplicadas para explorar diferentes frentes de trabalho ao longo do desenvolvimento e controle da operação dos parques eólicos.
As RNAs são modelos que foram inicialmente introduzidos em 1943 pelos pesquisadores Warren McCulloch e Walter Pitts que, em suma, decidiram-se em modelar como os neurônios do cérebro deveriam se comportar na simulação de uma simples aplicação de circuitos elétricos. A partir de então, surgiram diferentes topologias neurais, além da aplicação dessas redes em diversos campos do conhecimento, tais como: medicina, telecomunicações, sensoriamento remoto, entre outras.
No contexto das eólicas offshore, a utilização das RNAs tem apresentado uma quebra de paradigma na área nos últimos anos. É possível observar a publicação de diversas propostas científicas e artigos jornalísticos sobre o tema, além do grande interesse em investir nessas soluções por países que já possuem uma grande capacidade instalada fonte. Desta forma, com o forte impulsionamento da IA nos últimos anos, há também forte tendência da criação de novas tecnologias baseadas em RNAs e, por consequência, o surgimento de soluções cada vez mais efetivas e acessíveis no campo das eólicas offshore. Especificamente no setor eólico, tais tecnologias vêm sendo empregadas com o objetivo de garantir previsibilidade e segurança das operações e, como resultado, proporcionar maiores margens de receita aos empreendedores e gestores de parques eólicos.
Dentre as diversas aplicações existentes em IA, um dos principais subcampos de estudo trata-se do chamado Aprendizado Profundo (“Deep Learning”). O aprendizado profundo basicamente visa empregar RNAs com várias camadas de processamento a fim de tratar aplicações complexas, como desde a classificação de alvos em imagens digitais, previsão de valores numéricos, mecanismos de recomendação e até mesmo para o reconhecimento de voz de indivíduos. Trabalhos científicos como: Predicting long-term wind speed in wind farms of northeast brazil: A comparative analysis through machine learning models (PAULA, 2020); Design of a Voice Recognition System Using Artificial Neural Network (MAYOWA, 2024); The Employment of a Machine Learning-Based Recommendation System to Maximize Netflix User Satisfaction (OMERAGIC, 2023) englobam esses exemplos.
De forma mais tecnicista, as RNAs são metodologias computacionais idealizadas para representar um paradigma matemático inspirado em uma estrutura neural inteligente, em outras palavras: o cérebro humano. Os paradigmas matemáticos representados pelas RNAs dão origem à diferentes modelagens baseadas em funções que combinam conceitos avançados de cálculo, álgebra linear e estatística. Tais processos de modelagem permitem tratar a complexidade dos dados, bem como explorar suas relações de forma aprofundada, incluindo comportamentos não lineares, de difícil interpretação e análise.
Do ponto de vista de “criação” das RNAs, podemos realizar uma analogia com a neurológica biológica, a partir da comparação do cérebro humano com o sistema computacional, e os neurônios artificiais como sendo uma simplificação dos neurônios reais. Vejamos a Figura 02 na sequência, que retrata uma esquematização gráfica de uma RNA simples.
Figura 02: Representação simplificada de uma rede neural artificial.
Fonte: Zuben et al., 2010
Na Figura 02, é apresentado um esquema visual de uma rede neural artificial simples, em que são ilustradas: a camada de entrada, com seus 𝑚 neurônios, (𝑥1, 𝑥2, 𝑥𝑚) e seus respectivos pesos, (𝑤𝑘1, 𝑤𝑘2, 𝑤𝑘𝑚), um “somador”, que realiza a junção dos neurônios de entradas ponderados por seus respectivos pesos, a função de ativação, 𝜑, e a saída da rede, 𝑦𝑘. De forma sucinta, são inseridos no modelo os valores de diversas variáveis (atributos dos dados) a partir da camada de entrada, com o objetivo de obter um resultado na saída da rede, seja ele numérico ou não. Os valores de entrada são transmitidos aos neurônios da camada de entrada, onde são processados com base nos pesos atribuídos a cada variável e, por fim, a partir da função de ativação, resultando no valor de saída esperado. Para maiores detalhes sobre o funcionamento da rede neural, bem como os cálculos envolvidos para a obtenção dos resultados sugerimos o vídeo: “Redes Neurais Artificiais – Conceitos teóricos e práticos básicos – Matheus Pussaignolli” (https://www.youtube.com/watch?v=FCRStdk9hRg&t=159s), publicado no canal do Youtube EstatiDados.
A partir da exemplificação do funcionamento da rede, podemos elencar diversas aplicações em que as RNAs podem ser utilizadas no setor das eólicas offshore. Algumas delas são: (i) previsibilidade de ventos, (ii) identificação de aves, bem como no (iii) controle para identificação de possíveis corrosões das turbinas.
Redes neurais artificiais (RNA) para previsibilidade de ventos
No âmbito das aplicações das RNAs para a previsibilidade vento, o objetivo de utilização das redes é estimar a possibilidade de ocorrer rajadas de vento em determinados horizontes de tempo, especificamente: (i) 30 minutos à frente (extremo curto prazo), (ii) de 30 minutos a 6 horas (curto prazo), (iii) de 6 horas a 1 dia (médio prazo) e, por fim, (iv) de 1 dia a 1 semana à frente (longo prazo).
Diversos trabalhos da literatura científica têm apresentado diferentes arquiteturas de RNAs, isso é, configurações da rede visando a obtenção de um resultado mais preciso da previsão. Dentre as diversas topologias, podemos citar: as redes neurais do tipo feed-foward e as redes recorrentes. A principal diferença entre ambas as arquiteturas está na ausência ou presença de conexões que formam ciclos, permitindo que redes recorrentes processem informações sequenciais e memorizem estados anteriores ao passo que as redes do tipo feed-foward, esse mecanismo cíclico não existe. Vejamos a Figura 03, que representa uma rede feed-foward que abriga, além das camadas de entrada e saída, uma camada intermediria de neurônios.
Figura 03: Representação de uma rede neural multicamadas.
Fonte: Arquitetura de Redes Neurais Artificiais (2021).
Já no que compete as redes neurais recorrentes, estas utilizam uma conexão cíclica (de retorno) para os neurônios da camada intermediária. Esse retorno permite que os resultados sejam refinados a fim de melhorar o resultado na camada seguinte e, por essa razão, são consideradas como redes “com memória”. Além disso, existe a possibilidade que esse retorno não seja realizado por todos os neurônios da camada intermediária, mas somente por alguns, o que proporciona uma ampla variedade de configurações da rede. Vejamos a Figura 04 abaixo que retrata uma configuração de rede neural recorrente:
Figura 04: Representação de uma rede neural recorrente.
Fonte: Arquitetura de Redes Neurais Artificiais (2021).
No contexto prático das eólicas offshore, são utilizados diversos conjuntos de dados meteorológicos de entrada na primeira camada da rede, tais como: temperatura do ar, umidade do ar, pressão, precipitação, entre outros, com o objetivo de levar à camada de saída a previsão da velocidade do vento nos distintos horizontes de tempo apresentados. Na prática, a aplicação de diversas metodologias baseadas em redes neurais capacita os empreendedores de energia eólica a aprimorar seu planejamento, permitindo ações antecipadas para agendar manutenções das turbinas durante períodos de baixa geração, mitigar volatilidades nos preços da energia, e oferecer uma visualização mais eficiente da geração eólica para os operadores de sistemas elétricos globalmente.
Redes neurais convolucionais para identificação de aves e de possíveis corrosões das turbinas
As redes neurais convolucionais, diferentemente das demais configurações mencionadas anteriormente, utilizam dados gravados em formato tridimensional (tensorial) e são muito utilizadas em aplicações que tem como objetivo classificar imagens, bem como reconhecer objetos. As três camadas mais básicas encontradas nesse tipo de arquitetura são: as camadas convolucionais, as camadas de agrupamento, e as camadas totalmente conectadas (Fully Connected). A Figura 05 ilustra uma rede neural convolucional.
Figura 05: Esquemático simplificado de uma rede neural convolucional.
Fonte: Barbosa, Guilherme (2021).
A camada convolucional é onde ocorre a maior parte dos cálculos matemáticas, a partir da entrada e saída de dados. Em síntese, nas camadas convolucionais são extraídos os padrões e características específicas das imagens, tais como as bordas, texturas e formas. No contexto das turbinas eólicas offshore, por exemplo, os dados de entrada poderiam incluir (a) imagens digitais de aves capturadas por drones que monitoram os parques eólicos, e (b) imagens que evidenciam corrosão nas turbinas; isso permitiria aplicações potenciais como a detecção de corrosão nas estruturas, e a identificação de características específicas das aves que podem impactar o desempenho e a segurança das instalações.
Na sequência, na camada de agrupamento, são identificados os principais padrões a partir das imagens de entrada. Ou seja, à medida que existem mais camadas ao longo da rede é possível detectar características mais complexas e abstratas. Por exemplo, em uma foto capturada por um drone, seria possível detectar a espécie de uma ave que aparecesse em tamanho reduzido na imagem, dependendo da qualidade da fotografia.
Por fim, a camada totalmente conectada são as mais densas de rede e são responsáveis pela classificação final obtida no processo de aprendizagem da RNA. Basicamente, elas recebem as características que foram extraídas pelas camadas convolucionais e de agrupamento, e as transformam em probabilidades de classificação. No caso das eólicas offshore, por exemplo, poderia ser calculada a probabilidade de existência de uma corrosão na turbina ou ainda uma espécie específica de ave, no caso da segunda aplicação ora discutida.
A Figura 06 representa uma das etapas de um trabalho científico publicado em 2018 na revista Applied Science, intitulado por Deep learning case study for automatic bird identification (Niemi, 2018), que buscou identificar o tamanho de uma ave que sobrevoa um parque eólico offshore a partir do treinamento de uma RNA com o propósito de classificar aves em trânsito.
Figura 06: Identificação do processo de segmentação. (a) imagem original da ave e (b) imagem binária obtida como resultado da segmentação original com vistas a descobrir o tamanho da ave.
Fonte: Niemi (2018).